A casa dos espíritos: uma leitura da família tradicional brasileira com coisas a mais

Júlia Kopp
3 min readJul 19, 2023

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Por: Júlia Kopp

Imagem: Júlia Kopp

Prova da atemporalidade da literatura, “A Casa dos Espíritos” de Isabel Allende flerta com o realismo mágico latino ao mesmo tempo em que mostra uma obra ambientada no Chile do começo do século XX. E mesmo após mais de 40 anos de publicação, se percebe traços do Brasil contemporâneo na obra.

O livro traz a história de Clara, uma jovem que tem um dom, a clarividência. Desde muito nova já tinha previsões de eventos futuros, não só da própria vida, como de sua família, além das visões, Clara vê espíritos. Após uma grande tragédia na família, Clara fica muda e só volta a falar para anunciar que se casará com Esteban Trueba, casório que Clara sabia que aconteceria antes mesmo de Esteban pensar em pedir a mão dela. Ela conta não só sobre o casório, mas sobre todas as visões que tem ao leitor. Como um spoiler, traz a sensação de espera e ansiedade, talvez Isabel Allende, autora do livro, tenha escolhido assim para sentirmos o que Clara sente, ter que viver com o destino selado, a espera dos eventos pré-destinados e que mais ninguém sabe, apenas ela.

A estória que começa focada em Clara de repente coloca Trueba também no centro dos conflitos, então os anos vão passando e é possível acompanhar as relações familiares. É apresentada toda a família do casal, irmãos, filhos e netos, uma narrativa muito parecida com Cem Anos de Solidão de Gabo. Muito se assemelha e é perceptível que Allende quis beber da mesma fonte do vencedor do Prêmio Nobel, algo que funcionou bem até demais. Ela soube manter a individualidade de cada personagem, isso porque, mesmo narrando os acontecimentos e dramas de ao menos dez deles, o protagonismo de cada um não se apaga, todos são importantes, uns mais e outros menos, ainda sim, a autora não deixa as personagens esquecidas, faz questão de não dar só um começo, mas também um fim para cada uma.

O pior é ter medo do medo. — Isabel Allende.

Das personagens, Esteban é a mais complexa da obra. Um homem que nasceu pobre, diferente da esposa, “venceu” na vida através da exploração de “seus” funcionários e quando cansou da vida no campo decidiu seguir carreira na política, especificamente no partido conservador de direita. Allende coloca a personagem de Esteban em diversas situações que fazem o leitor pensar que ele é a pior pessoa do mundo, senão for a pior, ao menos no top 10 ele está, mas ao mesmo tempo constrói um outro lado dele, um marido, pai e avô que quer o melhor para a família. A dualidade da personagem é muito bem construída, faz pensar que o mundo não é preto no branco, não é dividido em bem e mal, há pessoas que tomam decisões más, mas não são feitas só disso. Ainda sim, o velho, que já foi jovem em algum momento, é podre e faz com que o leitor pense se ele de fato mereceu o final sereno que lhe foi dado, mesmo que tenha sido uma pessoa boa para algumas, foi uma terrível para várias outras.

Além de narrar a história de toda a linhagem de uma família e suas personagens, a obra ainda mostra ao leitor a resistência e a força do povo, que em meio a perseguição, tortura e censura, continuou a lutar pelo fim do período de terror no país e não deixou de acreditar na revolução. Afinal, como diz Allende, o pior é ter medo do medo.

A casa dos espíritos, a primeira novela de Isabel Allende, se passa no Chile do século XX, mas a leitura parece mais uma biografia do Brasil dos últimos oito anos para cá do que qualquer outra coisa. Isso porque o que não falta são Estebans na política, afinal, apoiou o golpe militar, sofreu com as consequências, que não foram poucas, assim com a família também, mas não se arrependeu. Continuou sendo um velho maldito que faria exatamente tudo de novo para evitar a chegada da esquerda ao poder político. A obra, que no começo parece ser a estória de conflitos e dramas da geração inteira de uma família, se mostra muito além. É também um livro político e necessário e consegue arrancar lágrimas do mais sensíveis.

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